Em passos largos ao sul de lugar nenhum…

O tempo anda tão depressa que é comum olharmos para o calendário e já estarmos no meio do mês. É contando sempre a chegada do final da sexta-feira que levamos nossas vidas, com pressa o tempo inteiro. Pressa para chegar logo no trabalho, pressa para o expediente acabar e, por fim, a pressa para voltar para casa . Talvez nossa pressa seja apenas uma ideia ilusória de que chegaremos mais rápido ao sossego. Vamos seguindo, dia após dia, na esperança de um fim de tarde sem nada na cabeça, um tempo livre para podermos gastar com a família ou nossos amigos; quem sabe aquele passeio no parque, aquele barzinho para jogar conversa fora, ler um livro ou assistir aquela comédia bestinha, só para gastar o tempo. Mas, de todo modo, vivemos na era da urgência! Tudo é urgente! É urgente chegarmos ao trabalho, e termos mais dinheiro para as férias, e quando estamos de férias, sem nada para fazer, é urgente que encontremos uma ocupação abrupta para escaparmos do tédio que é conviver apenas com nossos pensamentos.

E como se não bastasse o caráter de urgência das grandes cidades, há ainda a poluição sonora e a tecnologia nos assombrando a cada passo que damos. Quando estamos em casa é o carro da pamonha passando na rua e nos impedindo de ouvir o telefone ou à televisão. Quando estamos no metrô são os celulares de sujeitos sem educação que, como se não bastasse tocarem música alta, tocam música ruim. No trânsito são as buzinas e os palavrões dos apressadinhos, e o pouco que sobra da fé na humanidade indo pelo ralo quando vemos um sujeito despejar pela janela um maço de cigarros já vazio. A tecnologia que nos prometeram que viria para ajudar, apenas está nos engolindo com sua velocidade.

Os celulares nasceram com a promessa de quem não dependeríamos mais dos telefones fixos para nos comunicar e, sem que notássemos, nos fizeram perder aquele momento em que sentávamos ao sofá e  atualizávamos os amigos sobre os acontecimentos da nossa vida. Aos poucos as vozes que ouvíamos do outro lado da linha passaram a ser substituídas por mensagens de texto e as coisas que passávamos minutos contando no telefone, podem ser lidas em instantes no mural de qualquer Facebook. Pensamentos cada vez mais fragmentos em 140 carácteres. E os carros que nos vendem com a promessa de status e conforto só nos garantem a comodidade de ficarmos presos no trânsito.

Perdemos alguns hábitos que davam um sabor mais gostoso para a vida. Não temos mais tempo para nos sentar e ler um livro. Lemos em pé nos ônibus e nos metrôs mesmo, para passar o tempo mais depressa. Já não reservamos um espaço durante o dia para ouvir os discos que gostamos; a comodidade de fazer o download de discos inteiros em menos tempo do que gastaríamos caso fôssemos a uma loja, nos fez deixar de apreciar as fotos dos encartes, o ritual de ligar o som e colocar um CD para tocar. A regra é que ocupemos o nosso tempo de alguma forma e a ociosidade tão necessária, nos vem carregada de culpa.

A Era da Urgência é também a Era da Ilusão, onde somos comprados por tudo e por nada. Somos comprados por promessas de um futuro e uma paz que nunca chegam. Somos comprados pela ideia de um presente que não mais vivemos já que estamos ávidos pelo futuro. E somos consumidos pela ideia de um passado que nos enche de nostalgias. E esse, é um texto sem conclusão, talvez porque a grande claustrofobia dessa nossa era, é não conseguirmos enxergar saídas e nem meios de nos livrarmos dos nossos hábitos que só consomem nossa juventude, nossa saúde e nos fazem viver e morrer por nada. Talvez para enchermos os cofres dos bancos, quem sabe, e usufruirmos muito pouco dos nossos esforços…

Luís Antônio – Gabriela, um “Comum de dois”

Foto de Bob Souza. Luís Felipe interpretando Luís Antonio. Divulgação.

Travesti: Aquele que não é nem homem e nem mulher, mas é ao mesmo tempo os dois. Comum de dois gêneros.

A peça Luís Antônio – Gabriela, em exibição na Funarte, em São Paulo, até dia 26/02 é uma obra prima que conta a história de um travesti que vive na década de 60 e vale muito a pena ser vista. Batizada com o nome de batismo do personagem no qual é inspirada e com seu nome de travesti, a peça ganha pela sensibilidade ao retratar uma história real, sem cair em clichês e fugindo ao drama, transformando-o em poesia e musicalidade.

O cenário é bastante peculiar, marcado por cartazes, objetos cenográficos inusitados e originais, imagens contundentes e bolsas de soro que pendem do teto, simbolizando a fraqueza dos personagens e a doença da sociedade, numa história que mesmo tendo se passado há mais de 50 anos, continua atual em sua temática. Com algumas frases e músicas marcantes, cantadas pelos próprios atores, a peça termina e deixa algumas questões em aberto, além de uma mensagem anti-homofobia, fazendo o público se emocionar. Incrível, contundente e corajosa!

Complexo Cultural Funarte São Paulo
Sala Carlos Miranda 

Alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos
Próximo às estações Santa Cecília e Marechal Deodoro do Metrô
Informações:3662.5177

Quinta a Domingo às 21h30
Ingressos: R$ 5
Duração: 88minutos
Gênero:Documentário Cênico
Recomendação: 16 anos
Reestreia 12 de janeiro.
Temporada: até 26 de fevereiro

Direção de Nelson Baskerville
Intervenção dramatúrgica de Verônica Gentilin

Elenco: Marcos Felipe, Lucas Beda, Sandra Modesto, Verônica Gentilin, Virginia Iglesias e Day Porto.

“A vida é tão curta e a gente se doa aos pedaços!”

Olhar Acostumado

Ela voltava para a casa depois de um cansativo dia de trabalho. As pernas já sabiam o caminho de casa, o pisar nas ruas, calçadas e avenidas, assim como todo dia ela sabia que lhe aguardava sempre a mesma rotina: acordar às 6:30, tomar banho e estar pronta até às 7:00, tomar café e sair de casa até as 7:25 am. Caminhar quatro quadras, desviar das crianças entrando no colégio e fazendo tumulto na calçada, virar à esquerda, andar 50 metros, passar pela portaria do prédio, entrar no elevador, apertar o número 15, falar bom dia para o chefe, despachar formulários para o RH, atender clientes estressados, fazer reunião com os demais funcionários, se atrasar para o almoço e ser obrigada a almoçar no pior e único restaurante que serve após as 3:00, voltar correndo para o escritório, atender mais clientes que não transam e as 5:00 deixar o trabalho. Era assim que vivia a consultora econômica.

Os amigos perguntavam se valia a pena o tanto de stress para o salário e ela dizia que sim, tinha sempre o que queria, o carro que desejava, o apartamento bem decorado, as contas em dia, a posição que queria, mas não tinha a vida.

Era quinta à noite e após chegar do trabalho, trocar de roupa e comer uma maça, ela saiu de casa para ir ao teatro ver uma peça estrelada por um grande amigo que ela intimamente desejava que não fosse só um amigo. Gargalhadas, lágrimas nos olhos de orgulho e comoção também, no final do espetáculo cumprimentou o amigo, cumprimentou os atores e foram só os dois andar por São Paulo ao anoitecer, ambos com suas cervejas na mão.

– Tenho te achado tensa, sabia?

– E quando é que pessoas como eu não ficam tensas?

– Quando elas podem ser livres…

– E como podem ser livres se têm que pagar pela liberdade e mesmo livres para viver como elas querem, ainda são escravas do saldo bancário? – ela retrucou.

– E quando é que você vai deixar de ser escrava dos seus próprios temores? Já experimentou fazer algo sem pensar pelo menos uma vez na vida?!

Então ela o beijou e sentiu um alívio e ao mesmo tempo um frio na espinha de medo e susto quando as mãos dele tocaram seu rosto e após alguns instantes ele se afastou.

– Sim… Pela primeira vez na vida eu fiz! – Ela disse, virou as costas e saiu andando.

– Espere!! – Ele a segurou pelo braço, colocou a mão em sua cintura e a beijou novamente.

Depois foram andar pelo centro, tentavam encontrar detalhes perdidos pela cidade onde a beleza ficava ofuscada pela rotina e pararam em frente a um muro onde havia um trecho de uma música escrito: “Acreditar que todas as pessoas são felizes. Quem me dera ao menos uma vez…”  e o restante do refrão ficava coberto por um estêncil com o rosto do Renato Russo.

– Pelo menos eu estou feliz e acho que é o que importa agora…

– Uma vez eu li um livro, era de crônicas, que dizia que uma vaca, lembra das vacas que ficavam espalhadas pelas ruas?, era a mesma coisa que uma poesia, quebrando com o tédio e a rotina das ruas sempre iguais… – Ela disse.

– Não temos as vacas, mas temos a poesia!

– Eu acho que você foi a vaca da noite! – E ele sorriu e a beijou, pensando que ela era mais divertida do que ele sabia e deram mais algumas voltas, sentaram-se num bar de esquina e conversaram na companhia dos bêbados e das garrafas vazias que iam se acumulando na mesa.

Quando o bar fechou foram para a casa dela.

– Ah, meu deus! Já são 11 da manhã, a essa hora eu devia estar no trabalho! – Ela acordou assustada com uma mensagem de texto de seu chefe chegando.

– Relaxa, você já se atrasou mesmo… – Ela voltou para a cama, tirou a camiseta e o beijou. Fazia tempo que não fazia sexo matinal;

– Então é isso que chamam de tocar o foda-se? – O celular que vibrava sobre a cama foi jogado  no chão e se espatifou.

*O livro de crônicas se chama Doidas e Santas, de Martha Medeiros.