A (não) sexualidade da mulher

Sou feminista porque, dentre outros motivos, a vida inteira fui e vi mulheres sendo tratadas como seres sem sexualidade. Parece que foi ontem que eu, em meus quatorze ou quinze anos, frequentava a escola e me sentia excluída das aulas de biologia destinadas à uma ~tentativa~ de orientação sexual. Nessas aulas nunca  ouvi temas relacionados ao orgasmo feminino, à masturbação feminina ou nada que tivesse relação com a libido que as garotas presenciam na adolescência tanto quanto os garotos. O clima era tenso e a sensação era de que aprendíamos minimamente sobre sexo para temer sexo. Os garotos não. Eles podiam falar de bronha, era feita vista grossa quando eles tomavam viagra e ficavam exibindo seus membros sob a calça de tactel do uniforme escolar e levavam escondidas suas revistinhas pornográficas. Nunca ouvimos palestras sobre consentimento, mas nós, meninas, sempre ouvíamos instruções sobre o quão perigoso era andar desacompanhada, sobre o quão preocupante era nossa relação com álcool e todo aquele blá blá blá sobre culpabilização da vítima mulher que todo ser do sexo feminino conhece. Entre minhas amigas, a maioria de criação machista, um mero absorvente interno era tabu. Temia-se que um O.B. fizesse o hímen se romper, como se este, oras, fosse patrimônio do homem que “tiraria nossas virgindades”, afinal, a sexualidade feminina para poder se afirmar, precisa ser descoberta através de um homem. Ser lésbica, jamais. Siririca, nem pensar.

Ontem, durante meu momento de procrastinação, resolvi dar uma pesquisada nos temas que circulam sobre “Saúde Feminina” no Yahoo Respostas e acabei horrorizada com a quantidade de meninas sem qualquer orientação sobre temas que deveriam ser banais. Garotas de 13, 14, 18 anos assustadas com probleminhas femininos que facilmente seriam solucionados por uma visita de 15 minutos a um ginecologista e uma receita de pomada inofensiva e indolor. Ou que, às vezes, nem são problemas, são apenas nosso corpo. Deixam de ir ao médico por medo, vergonha, culpa, por temer represálias da mãe, por falta de autonomia sobre seus próprios corpos. São essas meninas que engravidam cedo por falta de orientação e prevenção adequada, ainda que tenham acesso à internet. Garotas que, como eu e muitas amigas, saíram horrorizadas da primeira visita ao ginecologista por termos nos sentido absolutamente constrangidas a responder perguntas quase inquisitórias como: você já fez sexo? usou preservativo?, nos fazendo sentir que transar fosse algo muito errado, como se valesse mais a nossa idade do que nossa maturidade para iniciar a vida sexual. Ignora-se a sexualidade feminina para evitar ter que lidar com ela. Se os médicos, que deveriam estar preparados para lidar com o quesito educação não estão, quem então estará?

Esses são apenas alguns exemplos do quanto à mulher é negado o direito de acesso ao próprio corpo, à sua autonomia e sexualidade. Acontece a negação desses direitos a cada vez que vamos ao médico por uma simples dor de garganta, pegamos a receita de um antibiótico, e o médico nem sequer nos informa que pode haver interação com a pílula anti-concepcional, porque nossa sexualidade é invisível e problema nosso se ocorrer uma gravidez indesejada: “na hora de dar foi bom, não? Se tivesse fechado as pernas!”. Acontece toda vez que abrimos uma revista destinada ao público feminino e fala-se tudo sobre sexo menos o primordial: que é impossível aproveitar o sexo sem antes aproveitar a si mesma e sempre que vemos um pornô e foi desenvolvido para o público masculino. Brochamos. Ocorre sempre que mulheres que não se adaptam à anti-concepcionais hormonais procuram ajuda médica para encontrar um outro método eficaz e não o conseguem porque os valores são inacessíveis e o Estado não os provê. A mulher não tem sexualidade para a indústria pornográfica e nem para o Estado.

Precisamos romper essa redoma de silêncio. Dialogar com as amigas, fazer verdadeiras excursões às Sex Shop espalhadas por aí sem medo de sermos felizes, descobrir a literatura erótica esquecida nas estantes das livrarias É necessário cessar a invisibilidade que se inicia no momento que temos o nosso lado mais genuíno apagado por uma cultura machista. Se, por um lado, somos vítimas desse tipo de construção, por outro, podemos e devemos utilizá-la a nosso favor como um meio de empoderamento da mulher e do ~universo feminino~. Escrevi esse texto por mais Oficinas de Siririca acontecendo por aí e pra que, em um futuro não tão distante, nenhuma mulher sofra slut-shaming por usar um O.B. ou tenha que se ocupar com os fiscais de sua (não) sexualidade.

 

 

 

Luís Antônio – Gabriela: Uma peça sobre diversidade e humanidade

Nesse domingo, fui com um amigo rever a peça Luis Antônio – Gabriela, escrita por Nelson Baskerville, eleita pelos críticos da APCA como a melhor de 2011. Durante a apresentação, tudo o que eu conseguia pensar era que o mundo seria muito mais humano e agradável se todas as pessoas a assistissem. O espetáculo conta a história de um travesti que sofre por assumir sua transsexualidade em plena Ditadura Militar e, mais do que uma lição sobre a aceitação da diversidade e a quebra de papéis de gênero, é uma lição sobre humanidade, amor e generosidade.

luis antonio

Maltratado pela vida, saindo de casa aos dezesseis ano e obrigado a entrar no mundo da prostituição para sobreviver, tendo acabado em Bilboa, na Espanha, onde veio a falecer em 2006, aos 53 anos, já muito debilitado pela Aids e  os efeitos das injeções de silicone, Luís Antônio jamais perdeu a alegria de viver. Ele falava sobre a entrega a vida, sobre distribuir amor às pessoas, sobre a generosidade. “A vida é tão curta e eu vou ficar me doando em pedaços?”, ele dizia.

Na plateia do teatro lotado havia pessoas de todos os gêneros, idades, sexualidades e estilos dando risadas, se emocionando e possivelmente imaginando um mundo onde a felicidade, a diferença e o gozo do outro, não sejam capazes de incomodar ninguém. Me levantei da poltrona ao término ainda com lágrimas brotando dos olhos, e após aplausos intermináveis e calorosos, voltei para casa sonhando com um mundo de mais amor e menos julgamento.

Com o fim da temporada em São Paulo, no teatro Alfredo Mesquita, em Santana, a peça irá viajar por várias capitais do Brasil. Para quem é de SP e não conseguiu ver a tempo, também há o livro recém-lançado por Nelson Baskerville, que além de contar a história de seu irmão Luís Antônio – Gabriela, traz também o roteiro da peça.

Luís Antônio – Gabriela, um “Comum de dois”

Foto de Bob Souza. Luís Felipe interpretando Luís Antonio. Divulgação.

Travesti: Aquele que não é nem homem e nem mulher, mas é ao mesmo tempo os dois. Comum de dois gêneros.

A peça Luís Antônio – Gabriela, em exibição na Funarte, em São Paulo, até dia 26/02 é uma obra prima que conta a história de um travesti que vive na década de 60 e vale muito a pena ser vista. Batizada com o nome de batismo do personagem no qual é inspirada e com seu nome de travesti, a peça ganha pela sensibilidade ao retratar uma história real, sem cair em clichês e fugindo ao drama, transformando-o em poesia e musicalidade.

O cenário é bastante peculiar, marcado por cartazes, objetos cenográficos inusitados e originais, imagens contundentes e bolsas de soro que pendem do teto, simbolizando a fraqueza dos personagens e a doença da sociedade, numa história que mesmo tendo se passado há mais de 50 anos, continua atual em sua temática. Com algumas frases e músicas marcantes, cantadas pelos próprios atores, a peça termina e deixa algumas questões em aberto, além de uma mensagem anti-homofobia, fazendo o público se emocionar. Incrível, contundente e corajosa!

Complexo Cultural Funarte São Paulo
Sala Carlos Miranda 

Alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos
Próximo às estações Santa Cecília e Marechal Deodoro do Metrô
Informações:3662.5177

Quinta a Domingo às 21h30
Ingressos: R$ 5
Duração: 88minutos
Gênero:Documentário Cênico
Recomendação: 16 anos
Reestreia 12 de janeiro.
Temporada: até 26 de fevereiro

Direção de Nelson Baskerville
Intervenção dramatúrgica de Verônica Gentilin

Elenco: Marcos Felipe, Lucas Beda, Sandra Modesto, Verônica Gentilin, Virginia Iglesias e Day Porto.

“A vida é tão curta e a gente se doa aos pedaços!”

O Problema do Amor Unilateral

Semana passada, lendo alguns blogs, fui apresentada ao psicanalista Flávio Gikovate, que foi um dos pioneiros no Brasil a abordar questões sobre amor e sexualidade. Gikovate escreveu diversos livros e apresenta todos os domingos às 21h, pela CBN, o programa “No divã do Gikovate”. Foi uma enorme e maravilhosa surpresa assistir a uma palestra do psicanalista na qual ele fala sobre amor e sexualidade, temas que por serem dotados de tantos clichês e obviedade, tornaram-se chatos e desinteressantes. Gikovate porém, os abordou com uma enorme clareza e os expondo de maneira pouco corriqueira, provou que é sim possível falar sobre amor e sexualidade sob novas perspectivas.

Segundo o autor, crescemos buscando a sensação de perfeição, paz e plenitude que sentíamos ainda no ventre materno, que seria responsável pelo fenômeno do amor. Entretanto, crescemos acreditando em uma forma de amor que foge à realidade dos relacionamentos amorosos saudáveis e felizes, já que esta se baseia na ideia de um amor romântico, no sentido literário da palavra, que parte da premissa de que o indivíduo é sempre incompleto e então, irá se relacionar com outro ser tão incompleto e assim, os dois irão se completar, como se essas pessoas fossem a “fórmula da felicidade” de seus respectivos amores. Contudo, esse modelo não funciona, pois, baseado nessa relação de inter-dependência, os envolvidos passam a descontar suas frustrações e insatisfações nos parceiros, e a relação jamais evolui. Daí surge também a ideia de quem os opostos se atraem, visto que a mesma é alicerçada nos dizeres de que o o traço que um indivíduo não possui por natureza, ele irá encontrar em seu parceiro.

E então, dado o problema, qual seria a solução, a fórmula secreta que todos querem descobrir para viver relacionamentos amorosos saudáveis, felizes e prósperos? O segredo estaria na individualidade, que leia-se, é totalmente diferente do egoísmo. E realmente faz muito mais sentido: uma relação entre duas pessoas que são completas, que sabem conviver consigo mesmas, que não se afligem com a solidão e que se amam e acrescentam um ao outro. Foi lendo Gikovate que entendi o motivo de ser tão incompreendida por algumas amigas e de (quase) sempre me envolver com as pessoas erradas. Foi Rita Lee quem disse: “Amor sem sexo é amizade”, mas quando avançamos no patamar dos relacionamentos, acabamos nos envolvendo sentimentalmente com quase-amigos, quase por que, além do envolvimento afetivo, há simultaneamente o envolvimento sexual.

Estar ou não em um relacionamento concreto, estar namorando, morando junto, ou casado com alguém, é tido como um bônus para alavancar o status social, logo quem não está envolvido com ninguém é tido como um coitado, visto como incompleto. Realmente nunca tive ou sempre deixei minha sorte no amor escapar, o que não significa que eu seja menos feliz do que alguém que tem com quem dividir o travesseiro todas as noites. De fato, depois que parei de emendar relacionamentos que pouco me fizeram crescer, e perdi o medo de ficar sozinha, de não ter sempre companhia para o cinema, para quem ligar tarde da noite e falar coisas quentes, aprendi a gostar de quem eu sou e reconhecer o que há de bom e de ruim em mim, e conquistei o prazer de conviver e lidar bem com isso. Não há nada mais gratificante do que conhecer a si mesmo, e saber que esse auto-conhecimento foi conquistado à suas próprias custas, sem depender de uma terceira pessoa e claro, usar isso a seu favor, escolhendo melhor as futuras pessoas com quem irá se relacionar.

Contudo, é difícil que as pessoas percebam isso, como eu também demorei a perceber, e continuem no eterno ciclo vicioso dos relacionamentos de inter-dependência que nunca funcionam, até que resolvam mudar a fórmula. Talvez a dificuldade nessa mudança seja fruto de uma ideia de posse e ciumes existente na maioria dos relacionamentos, que ao invés de serem baseados na cumplicidade do casal, se estruturam em cobranças e obrigações. Nessa situação, acaba sempre existindo aquele que necessita menos de amor e o que necessita mais, sendo que sempre vai haver insegurança, insatisfação e a grande armadilha do amor unilateral,onde um sempre ama mais, ou ama a projeção que fez do outro para alimentar suas expectativas desesperadas de encontrar companhia e a cura para seu vazio interior. Não sei se é muito, mas talvez seja mais difícil encontrar quem esteja disposto a vivenciar um relacionamento “moderno” onde o amor e não convenções sejam a regra, e que haja sinceridade para que nenhuma das partes se aproveite da liberdade que o relacionamento fornece para garantir benefícios apenas a si próprio.

E segue abaixo um trecho da palestra de Flávio Gikovate no programa Café Filosófico:

As demais partes do vídeo podem ser vistas no youtube e se você quiser saber mais sobre o tema, pode ler o artigos no site do psicanalista.