Durante muitos anos, se me perguntassem, eu teria dito que nunca fui vítima de racismo.
Talvez seja porque quando a gente pensa em racismo, logo imagina um preto sendo expulso de um lugar chic ou sendo xingado de macaco. Mas sofrer racismo vai além disso, VAI MUITO ALÉM DISSO, e eu explico:
Quando um preto é xingado, constrangido, fica mais fácil reconhecer o racismo e não internalizar os xingamentos. É mais fácil reconhecer que o problema está no racista, não em nós. Dói, eu sei, e tenho muita empatia por cada preto que já ouviu ameaças, xingamentos ou perdeu a vida por sua cor de pele. Mas quem dera o racismo fosse escancarado e não “à brasileira”. Quem dera fosse tão simples identificar quem é o racista e o que é o racismo. Se todo mundo dissesse em alto e bom som que não gosta de nós porque somos pretos, seria questão de entender que simplesmente o problema está no preconceito outro e que não há nada de errado em nós (e claro, processar esses desgraçados). Mas quando a gente é vítima de racismo sem ser, necessariamente, xingado e constrangido escancaradamente, começamos a achar que o problema está em nós. E esse é um lado do qual quase nunca falamos.
A primeira vez que eu sofri racismo eu me senti estranha, mas não pensei, por anos, que tivesse sido racismo. No entanto, ficou a lembrança da primeira vez que eu me senti completamente inadequada sendo como era. Eu tinha por volta de 12 anos de idade, estava indo fazer uma maquete para a aula de história na casa de uma “amiga”. Essa “amiga” era aquele combo da garota perfeita por quem todo garoto tem um crush (eu não lembro qual era o termo que a gente usava na época, em meados dos anos 2000): branca, cabelo liso com reflexos loiros, olho meio verde, umas sardas charmosinhas. E eu, era a sombra dela: a neguinha feia, cabelo ruim preso num rabo de cavalo, mas que era engraçada, boa ouvinte e servia de ponte entre ela e os meninos. As outras meninas do nosso grupo seguiam o mesmo padrão dessa minha “amiga”; todas, sem exceção, tinham cabelos lisos e peles muito claras; entre a confecção da maquete e fofocas, elas elogiavam umas nas outras características que eu não tinha e jamais viria a ter, como olhos claros, cabelos que ficavam lindos em tranças embutidas e que ganhavam reflexos naturais do sol. Eu ficava ali, ouvindo e elogiando, sem esperar elogios de volta. Mas aí, percebendo esse meu constrangimento por estar totalmente excluída da conversa, elas começaram e pegar meus cachinhos que estavam presos e apertá-los. E eu, sem muita reação, fiquei ali ouvindo elas falando do quanto meu cabelo cheirava bem, do quanto era macio, do quando elas não esperavam que fosse macio e gostoso de pegar. Elas faziam isso e eu tentava sorrir e elogiar meu próprio cabelo, enquanto uma voz na minha cabeça gritava “ELAS ESPERAVAM QUE MEU CABELO FOSSE DURO E ESPETASSE A MÃO DELAS, COMO PALHA DE AÇO, BOMBRIL E QUE TIVESSE CHEIRO RUIM”. Mas tudo bem, elas estava sendo legais em me incluir na conversa, não é mesmo? Não era um cabelo bonito mesmo, pelo menos estavam sendo legais ao dizer que era gostoso de apertar. Acho que ainda lembrar disso mesmo quase 20 anos depois dá uma ideia do quanto aquele episódio fez com que eu me sentisse inferior.
Porém, ali começou o tal do incômodo comigo mesma. Eu não entendia que tinha vivenciado um episódio recheado de racismo, pois na minha vida escolar inteira eu havia aprendido que racismo estava relacionado à época da escravidão e que existiam pessoas que xingavam e humilhavam negros até hoje porque não gostavam da cor deles. Eu não tinha sido xingada, humilhada, tinha apenas ganhado elogios racistas, o que eu só viria a entender anos e anos depois. Devia ficar feliz por esses elogios, não é verdade? E entender que o problema estava em mim realmente, já que meus traços não colaboravam.
Foi depois desse dia que eu coloquei na cabeça que pra ser feliz precisava fazer uma escova progressiva. Depois desse dia eu também comecei a querer ser como as minhas “amigas” para ser aceita como elas eram. E não era uma questão apenas de chamar a atenção dos meninos. Eu não tinha autoestima sequer pra achar que chamaria atenção deles. Mas eu percebia que as meninas padrão tinham mais amigos (mesmo as que eram insuportavelmente desinteressantes e infantis), elas tinham mais crushes (enquanto eu era a amiga dos meninos, aquela com quem eles contavam pedindo conselhos, mas não enxergavam “daquela” forma), elas eram convidadas para mais festas, recebiam mais carinho dos professores, dos funcionários do colégio, eram mais populares, os pais dos amigos gostavam delas e demonstravam isso. Enquanto isso, eu tinha muita vergonha dos pais de qualquer amiga de escola, pois era bastante comum que eu fosse vista por pais como má influência para suas filhas, mesmo sendo uma grande nerd que não pegava ninguém.
Claro que ali, estudando numa escola particular a qual meu pai fazia enorme esforço para pagar antes que eu conseguisse uma bolsa de 100%, morando em um bairro mais periférico e com menos acesso a arte, cultura, internet, roupas de marca, as diferenças entre mim e minhas “amigas” não estava somente na cor de pele. E por todas essas diferenças, e pela aparência física, obviamente, eu era constantemente excluída, estava o tempo inteiro tentando me provar, ser melhor, ser mais bonita, aparecer mais, ter mais amigos, tirar notas melhores. No final das contas, o que toda criança quer é sentir que é querida. Meus pais e demais familiares faziam um esforço enorme para que eu tivesse essa atenção, mas sem saberem, eles mesmos, como funcionava o racismo, não tinham como me alertar que o problema não estava em mim. E por anos eu fui convivendo com essa sensação de inadequação. Tive que descobrir sozinha, anos depois, que o padrão de beleza era branco e que essa era a grande razão por trás do mal estar que eu sentia naquele ambiente.
E padrão de beleza branco significa que as pessoas brancas preferem se relacionar com outras pessoas brancas. Elas preferem fazer amizades com pessoas brancas e dão mais atenção e mais credibilidade para pessoas brancas. As demais pessoas, que não fazem parte desse padrão, não são tão interessantes. Não entender como funciona o racismo quando você está inserido numa comunidade racista é terrível. A vida social e escolar de uma pessoa preta que cresce nesse contexto pode se tornar um inferno. E pior do que isso, a criança negra que vive em um contexto branco, geralmente cresce internalizando uma série de preconceitos contra si própria.
Eu não nasci odiando meu cabelo. Não comecei achar minha boca muito grande do nada. Não nasci tímida e nem ansiosa. Não nasci bélica e nem aprendi tantos xingamentos do nada. É difícil escrever sobre isso sem estar motivada pela raiva ou tendo qualquer tipo de distanciamento, mas aí vem a melhor parte dessa história: no final daquele mesmo ano em que fui na casa da tal “amiga” padrãozinho fazer uma maquete, eu fui cancelada. O motivo? Quis ser leal e contar a essa menina que ela estava sendo corna aos 12 anos de idade. E por mais que eu contasse a história com riqueza de detalhes e não tivesse sequer autoestima para flertar com ninguém, fiquei como a garota feia que estava com inveja da loirinha gata e queria roubar o namorado da rival. Patético, eu sei. Mesmo naquela idade, eu achava ridículo brigar por causa de meninos.
Daquele dia em diante, a minha vida escolar de transformou em um inferno. Eu fui excluída de todas as rodinhas, cantavam músicas ofensivas quando eu passava, faziam todo tipo de chacota com a minha aparência e faziam questão de me lembrar que o tal do menino jamais olharia pra mim. Fui obrigada a mudar de turma e passei três anos de estresse constante, enquanto na escola e em casa, tudo era visto como picuinha de adolescente. Minha rotina era andar com medo de que ao pisar em qualquer corredor alguém viesse em meu ataque e me fizesse passar vergonha na frente de novas amizades que construí.
Vocês se lembram do cancelamento da Karol Conká? Eu não consegui compactuar com o cancelamento dela, embora ela tenha errado, porque o meu próprio cancelamento quase 20 anos atrás, me fez aprender algumas lições.
Estar em um ambiente branco sendo uma criança ou adolescente negra, te ensina desde cedo que você não pode errar. Quando você chega em um ambiente racista e começa a se enturmar, é porque as pessoas brancas foram “gentis” em abrir aquele espaço para você, mesmo você sendo tão diferente. Mas, se você dá um passo fora, isso é motivo para que suas “regalias” sejam cortadas, afinal, elas fizeram tanto esforço em te aceitar! Você errou e mostrou que aquelas pessoas eram boas demais e que você não merecia a compaixão delas em te reconhecer como um igual. Você tem zero credibilidade com aquelas pessoas. Agora que você pisou na bola, as pessoas estão autorizadas a te odiar, te perseguir, te desumanizar e serem cruéis. “Paga de gente boa, mas olha quem ela é de verdade!”. A pessoa negra não encontra ninguém para passar um pano. E nunca será desculpada, por mais que o crime dela tenha sido revelar que uma jovem já está sendo chifrada aos 12 anos de idade, em uma conversa privada.
É péssimo lembrar de todas essas situações e saber que essas pessoas se esqueceram. E que hoje vivem suas vidas tranquilamente, possivelmente reproduzindo seus padrões racistas que elas chamam de “mais afinidade”, “gosto pessoal” e “atração física”. E, se der uma stalkeada nas redes sociais, você facilmente encontra algumas se afirmando antirracistas enquanto posam para fotos ao lado de crianças negras em algum ato caridade.
Pelo menos, quando entendemos um pouco sobre a convivência em espaços racistas, conseguimos nos desprender de muitas coisas que internalizamos. É necessário desprender. E eu me desprendi quando entendi que as situações que aconteceram comigo, não aconteceriam com nenhuma garota branca na escola, por mais que motivos não faltassem.